Jennyfer Felicio, Juliana Cavalli e Thalia Dias

Favela, periferia, comunidade, quebrada… O que passa pela sua cabeça, quando essas palavras atravessam seu dia a dia? Para alguns, pode significar um lugar bem longe do centro, onde os acessos da cidade não chegam ou chegam de forma precária. Mas, para outros, a periferia é, nada mais, nada menos, que a construção de famílias e lares e onde inúmeros fazeres culturais e artísticos germinam e se propagam.

No Brasil, diversas pesquisas demonstram que a população negra periférica é a mais afetada pelos estereótipos. Violência: a imagem estereotipada de pessoas negras periféricas como violentas, agressivas e perigosas. Essa associação leva a estigmas negativos e predatórios; pobreza e marginalização: a relação do imaginário com o capitalismo. Na maioria das vezes, a pessoa negra moradora da periferia é vista em uma situação socioeconômica que não condiz com a realidade da periferia, já que esta constitui alguns dos maiores PIBs do Brasil, segundo o IBGE; estereótipos relacionados à aparência física também são comuns, como a associação de traços físicos negros com inferioridade ou falta de beleza. Essas representações reforçam padrões de comportamento negativos em autoridades da lei e podem afetar negativamente a identidade e a autoestima das pessoas negras periféricas (KRUGER, 2004; FANON, 1961).

As favelas brasileiras surgiram no início do século XIX, em um país mais preocupado com a expansão industrial do que com a população negra, que, naquele período, vivia um momento histórico importante de emancipação de corpos. A partir do crescimento constante e desordenado da cidade, somado à falta de prestígio e exclusão do povo negro, as favelas começaram a surgir nos morros em volta, à margem das cidades. Com a chegada de um grande número de pessoas e o elevado crescimento demográfico das favelas, surgem nesses lugares sociedades inteiras, com uma ancestralidade e tecnologia que foram responsáveis por formar novas conexões, enriquecer e diversificar a cultura, implantar e desenvolver novas tecnologias e, com o tempo, o surgimento de diversos estilos musicais, artes urbanas e manifestações religiosas.

A identidade da juventude negra periférica é influenciada pelas expressões estéticas, que atuam como indicadores sociais de experiências cotidianas. Além do código de vestimenta – que surge em tendências – os jovens da periferia buscam se destacar no mundo, reafirmando sua identidade como indivíduos na sociedade e como moradores de uma área periférica. As linguagens não são apenas ferramentas da cultura, mas também parte fundamental das relações de poder. Desta forma, as manifestações artísticas, como o pixo, a moda e a música, são importantes atores sociais.

A princípio, as roupas desempenham um papel crucial na construção da identidade dos jovens periféricos, funcionando como poderosa ferramenta de expressão pessoal e coletiva. Para muitos jovens periféricos, a escolha de vestimenta está ligada à forma de comunicar sua posição social, suas aspirações e, muitas vezes, sua resistência às normas impostas pela sociedade.

Da mesma forma, a pixação é um tipo de arte que se contrapõe às normas estabelecidas pela sociedade. Todo prédio, parede ou espaço urbano utilizado pelo pixo é uma tela na qual o pixador imprime sua fala, seus protestos e concepções para o mundo. Os locais em que são realizadas não são meramente escolhidos aleatoriamente – eles contêm mensagens que desafiam a ordem social em que vivemos. A caligrafia marginal é uma ferramenta de expressão e de protesto – é uma arte que reflete o cansaço e a revolução das comunidades.

Foto: No Quintal. 2008. Grupo Opni.

Ainda neste contexto, desde suas origens, o funk tem se mostrado importante ferramenta para a formação psicossocial de jovens e adultos da periferia. Cercado de preconceitos e tabus, o funk sempre esteve muito além de uma manifestação cultural; para o grupo, ele também exerce a função de expor o cotidiano e as vivências em zonas periféricas. É comum entender, de forma rasa, o funk apenas como parte da cultura de massa, o que já é controverso por si só, uma vez que a complexidade
sonora do ritmo vai muito além de suas letras. Contudo, o estilo também é um importante instrumento de denúncia, ao escancarar a violência policial, o machismo, o racismo e a desigualdade social dentro e fora das favelas. O funk, como uma diáspora africana, carrega diversos elementos afrolatinos e afro-atlânticos (SOUSA, 2019, p. 150).

É importante destacar como o racismo está intrínseco à criação de estereótipos periféricos e das próprias políticas de segurança. “No racismo, a negação é usada para manter e legitimar estruturas violentas de exclusão racial. […] Enquanto o sujeito negro se transforma em inimigo intrusivo, o branco torna-se a vítima compassiva; ou seja, o opressor torna-se oprimido e o oprimido, o tirano” (KILOMBA, 2016).

Portanto, as favelas, intrínsecas ao tecido urbano de muitas cidades – assim como as manifestações artísticas e culturais ali nascidas, são espaços complexos e multifacetados que resistem a qualquer tentativa de simplificação. Ao adentrarmos esse intrincado universo, somos confrontados com realidades que desafiam estereótipos e preconceitos. É importante analisar e compreender o poder de agência das favelas e de seus moradores, e principalmente como um está conectado ao outro. A favela costuma ser analisada pelos estudiosos a partir dos problemas sociais, em uma busca constante de soluções, como se a favela não obtivesse autonomia em relação ao restante da sociedade.

Foto: Cidade Mãe. 2019. Grupo Opni.

Estruturalmente, a favela é marginal devido à dificuldade de acesso a certos serviços urbanos, bens de consumo duráveis, formas de comunicação de massa, entre outros. No entanto, a habilidade dessas comunidades, e com condições socioeconômicas desfavoráveis, não impede que determinados grupos se organizem, resistam e busquem soluções para suas necessidades sem depender exclusivamente de intervenções externas. Muitas favelas têm uma grande capacidade de organização comunitária e política, e muitos líderes sociais e movimentos sociais podem surgir de forma orgânica, buscando assuntos que sejam de interesse das camadas populares que habitam as favelas.

Por isso, a arte é um importante fio condutor da manutenção cultural e da mudança de narrativa dentro e fora das periferias. A arte cria uma rede de relações e funções sociais que ajudam a moldar a maneira como jovens periféricos vivenciam e enxergam o mundo (GEERTZ, 2001).

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Mediadoras do Setor Educativo do MM Gerdau, Jennyfer Felicio é estudante do curso de Antropologia e Arqueologia da UFMG, Juliana Cavalli, estudante do curso de Letras da UFMG e Thalia Dias, estudante do curso de Artes Plásticas da UEMG.

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Referências bibliográficas:

BRASIL ESCOLA.Produção cultural periférica: percepções e perspectivas. Disponível em: <https://monografias.brasilescola.uol.com.br/arte-cultura/producao-cultural-periferica-percepcoes-e-perspectivas.htm>. Acesso em: 29 ago. 2024.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 2001.

JORNAL USP.Cultura periférica é uma das mais relevantes nos últimos 20 anos. Disponível em: <https://jornal.usp.br/atualidades/cultura-periferica-e-uma-das-mais-relevantes-nos-ultimos-20-anos/>. Acesso em: 29 ago. 2024.

MAGNO AZEVEDO, A. Estética negra e periférica: filosofia, arte e cultura. *Revista de Teoria da História, Goiânia, v. 22, n. 2, p. 36–51, 2020. Disponível em: <https://revistas.ufg.br/teoria/article/view/59887>. Acesso em: 9 ago. 2024.

SESC SP. Cultura e periferia. Disponível em: <https://portal.sescsp.org.br/online/artigo/8629_CULTURA+E+PERIFERIA>. Acesso em: 29 ago. 2024.

SOUZA, Miguel Alves de. “Sou feia, mas tô na moda”: o funk como canal de transmissão da voz feminina negra periférica. *Revista Humanidades e Inovação*, v. 6, n. 16, p. 146-155, 2019.