Juliana Cavalli, Allane Machado, Luciano Faria, Marco Aurélio Torres e Maryanne Normitta
Curadoria: Jéssica Gallo
A Espeleologia (termo originado do grego: spiliá – caverna; logia – estudo) é a ciência que estuda as cavernas e tem suas raízes na exploração de cavidades subterrâneas. Se consolidou como ciência e esporte no final do século XIX, com o trabalho do francês Edouard-Alfred Martel (1859-1938). No Brasil, sua prática começa no século XVIII, com a atividade mineratória do salitre para produção de pólvora (David, 2002). Por aqui ficaram famosos nomes como o de Peter Lund (1801-1880) – dinamarquês que trabalhou no estudo das cavernas e fósseis da bacia do Rio São Francisco –, Ricardo Krone (1861-1917) – pioneiro da espeleologia no Brasil –, Jean-Louis Christinat (1933-2001) – suíço que trouxe técnicas avançadas de espeleologia europeia – e Michel Le Bret (1926-2020) – fundador da Sociedade Brasileira de Espeleologia, entidade que permanece ativa nos dias atuais.
É importante reconhecer tais figuras para a história da evolução e da prática da espeleologia, porém, observa-se que esses personagens têm algo em comum: seu gênero e o alvo de suas peles. O papel das mulheres brancas na ciência sempre foi limitado por construções sociais que as restringiam à esfera privada, sendo responsabilidade delas o trabalho doméstico e de cuidados dos filhos, do marido e de seus familiares. As mulheres eram, então, educadas para assumirem esse lugar social, enquanto os homens brancos eram conduzidos para a prática esportiva, estudos científicos e atuação em áreas profissionais que provessem o lar. (Hirata, 2010). Esse contexto, aliado à cultura androcêntrica¹, dificultou a inclusão feminina em diversas áreas científicas, incluindo a espeleologia, mantendo-as à margem das descobertas e reconhecimentos. Apesar da marginalização, a luta por igualdade de gênero impulsionou debates sobre a representatividade feminina nas ciências, permitindo avanços na participação das mulheres e no reconhecimento de suas contribuições. Estudos como os de Souza et al. (2019) evidenciam que, mesmo com contribuições relevantes, as mulheres continuam sub-representadas, especialmente em cargos hierárquicos mais altos. O imaginário social, vê o cientista como um homem branco e “infalível”, reforçando a ideia da ciência como espaço masculino, invisibilizando as pioneiras que desempenharam papéis fundamentais.
1 O androcentrismo é uma visão de mundo centrada na masculinidade, onde a perspectiva de mundo masculina é usada para criar uma visão de mundo generalizada; considera tudo aquilo que não se encaixa em suas vivências como desviante e, portanto, não normal.
No contexto da espeleologia, essa exclusão se reflete em registros históricos. A edição especial da revista francesa Spelunca, que comemorava o centenário da travessia do Abismo de Bramabiau por Martel, destacou mais de cem profissionais em espeleologia, mas menciona apenas duas mulheres: Gabrielle Vallot (1880-1933) e Elizabeth Casteret (1905-1940). No Brasil, a participação feminina ganhou destaque em 1958, com Sônia Macedo de Oliveira, reconhecida como a primeira espeleóloga documentada, conforme levantamento realizado por Cruz et al. (2019). Anos mais tarde, no estado de São Paulo, em 1975, um grupo de seis mulheres e cinco homens fizeram uma descoberta significativa na Caverna de Santana, revelando o Salão Taqueupa, com cerca de 800 metros de corredores e espeleotemas. Essas mulheres mencionadas têm, além da Espeleologia, um ponto em comum: são mulheres brancas. Mesmo com o lento avanço no que tange a presença feminina nas cavernas, segue o questionamento: onde estão as mulheres negras?
Ao ampliar essa discussão para o recorte racial, torna-se evidente como a invisibilização das mulheres negras na ciência, assim como na espeleologia, é resultado de um processo histórico de exclusão por racismo. O imaginário coletivo é marcado por uma suposta igualdade racial entre pessoas brancas e negras, cunhado a partir da abolição da escravatura, como se, a partir deste evento, não houvessem mais abismos e as mesmas oportunidades fossem iguais tanto para negros quanto brancos, essa utopia é chamada de “democracia racial”. O conceito é revisto e ganha uma nova perspectiva a partir das reflexões de Abdias do Nascimento (1978), em sua obra “O genocídio do negro brasileiro”. Para o autor e ativista, “o mito da democracia racial” contribui para mascarar o racismo estrutural brasileiro, criando a falsa ideia de harmonia racial e apagando as contribuições negras na construção do país. Esse mito, aliado a outras narrativas, como o do senhor branco benevolente, perpetuam a ideia de que o Brasil é um país sem racismo, o que, na prática, serve para ocultar desigualdades que impedem a equidade racial em áreas como a espeleologia e esconde a discriminação, preconceito e criminalização da população negra.
2 Este evento comemorou, em 1988, os cem anos da expedição executada por Alfred-Edouard Martel que atravessou, pela primeira vez, o famoso e temido abismo cercado por lendas e contos populares; este fato histórico foi escolhido para marcar o ano de início da Espeleologia como um misto de atividade científica e esportiva.
3 “Constavam da equipe duas biólogas: Cecilia de Castro Tôrres e Maria Thereza Temperini, duas estudantes de biologia: Eleonora Trajano e Marietta Salles Silva, uma estudante de bioquímica: Zélia Maria Pinto Coelho […] e uma de filosofia: Rosely Rodrigues.” (TRAJANO, 1975)
Entre as décadas de 1940 e 1970 nos Estados Unidos, renomadas personalidades femininas negras, envolvidas principalmente nas STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática), alcançaram notáveis realizações, em específico na na matemática, ciências aeroespaciais e computação, e tiveram crucial participação na corrida espacial, como: Katherine Johnson (1918-2020), Dorothy Vaughan (1910-2008), Mary Jackson (1921-2005) – e a lista pode facilmente ser estendida, mas fiquemos neste exemplos. De volta ao Brasil, como exemplo de resistência, podemos citar Enedina Marques (1913- 1981), primeira mulher negra a se formar engenheira na Universidade Federal do Paraná. Filha de uma doméstica, enfrentou diversas dificuldades, se destacou na engenharia, sendo a responsável pela contribuição do plano hidrelétrico do estado, e mesmo assim precisava andar armada para ser respeitada entre seus subordinados.
Jéssica Gallo – acervo pessoal
A presença dessas mulheres não apenas desafia estereótipos de gênero e raça, mas também questiona as estruturas históricas que sempre as excluíram do conhecimento formal. Como afirmou Angela Davis, ícone do movimento negro estadunidense, filósofa, ex -integrante do partido Panteras Negras e escritora , em discurso proferido em 1981: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Isso significa que a luta das mulheres negras não é apenas por reconhecimento individual, mas por uma transformação coletiva, impactando profundamente as estruturas da sociedade. No contexto acadêmico e científico, essa transformação ocorre por meio da quebra de barreiras que historicamente impediram sua participação ativa, além da construção de espaços onde suas vozes e contribuições sejam ouvidas, reconhecidas e valorizadas.
4 Em 2017, estreou o filme “Estrelas Além do Tempo”, que conta a história de uma equipe de cientistas exclusivamente afro-americanas na NASA, responsáveis por importantes avanços na corrida espacial. O filme está disponível no Disney Plus e na Apple TV.
Maryanne Normita – acervo pessoal
Sendo assim, ciente deste contexto e da dificuldade de uma parcela significativa da população negra de ingressar no campo acadêmico e científico, o MM Gerdau – Museu das Minas e do Metal, sediou em 13 de fevereiro de 2025, também em comemoração ao ‘Dia Internacional das Meninas e Mulheres na Ciência’, o evento Cavernegras – Mulheres Pretas na espeleologia, promovendo um bate-papo online e aberto ao público. Neste evento, as biólogas e espeleólogas Maryanne Normitta (Guano Speleo/Caverneiras) e Jéssica Gallo (UFSCar) expandiram as discussões sobre o tema e aprofundaram o diálogo entre museu e sociedade, promovendo o protagonismo feminino negro nas ciências.
Foto: Matheus Gramigna
Na exibição presencial do bate papo, o evento contou também com a presença de três grupos de espeleologia mineiros, o Guano Speleo, Caverneiras (grupo feminino de espeleologia, que inclusive é a inspiração para o nome do evento) e Opilião – Grupo de Estudos Espeleológicos (OGrEE). Na roda de conversa, após a exibição do vídeo, compartilharam-se elaborações sobre uma situação que surgiu na divulgação do evento, em um grupo virtual nacional de espeleologia. Alguns membros da comunidade espeleológica (homens, brancos e cis) julgaram não ser necessário esse tipo de discussão ou recorte racial, pois, para eles, o campo espeleológico, sempre foi diverso, portanto, seria inútil celebrar conquistas de mulheres negras cientistas em questão. A reação desses homens serviu como confirmação da necessidade do tema ser abordado e da realização do bate papo. Além disso, outros comentários também surgiram, por parte de outros homens brancos , que enxergavam em suas atitudes traços racistas e estavam dispostos a rever suas relações com o mundo.
Foto: Matheus Gramigna
Iniciativas como essa não apenas dão visibilidade às trajetórias de mulheres negras na espeleologia, mas também criam um ambiente de troca e fortalecimento, essencial para romper com o mito da democracia racial e construir uma ciência mais diversa e equitativa. Por isso, a ocupação de espaços acadêmicos e científicos por mulheres negras é um ato de resistência e transformação. Romper com o histórico de invisibilização exige não apenas a entrada, mas a permanência e valorização dessas mulheres dentro da ciência. O conceito de lugar de fala, discutido pela cientista política Djamila Ribeiro (2019), reforça a importância de dar espaço para que as mulheres negras expressem suas vivências e questionem a ciência ‘tradicional’, reconfigurando-a a partir de suas perspectivas e contribuições.
A espeleologia, por si só, é uma área historicamente marcada pela baixa diversidade de gênero e raça. No entanto, podemos considerar que há um movimento crescente de reconhecimento da representatividade e promoção de maior equidade no campo. É necessário expandir o olhar para a inclusão de mais mulheres negras no campo da espeleologia e na ciência em geral, para que suas histórias sejam contadas, reconhecidas e valorizadas. Esta mudança não é apenas uma questão de justiça, mas uma necessidade para a transformação e avanço da ciência como um todo.
Foto: Matheus Gramigna
REFERÊNCIAS:
CRUZ, Eleciana T. et al. (2019). Pode-se falar em invisibilidade feminina na espeleologia? Reflexões acerca das contribuições da mulher no processo histórico da espeleologia. In: ZAMPAULO, R. A. (org.) CONGRESSO BRASILEIRO DE ESPELEOLOGIA, 35, 2019. Bonito. Anais… Campinas: SBE, 2019. p.412-421. Disponível em: <https://www.cavernas.org.br/wp-content/uploads/2021/07/35cbe_412-421.pdf> acesso em: 18/02/2025.
DAVID, Luiz Henrique (2002). Ecossistemas cavernícolas. Monografia (Licenciatura em Ciências Biológicas) – Faculdade de Ciências da Saúde, Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2002. Disponível em: <https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/123456789/2465/2/9861591.pdf> acesso em: 18/02/2025.
FELIZARDO, Alexandre. J. (2013). Um pioneiro da espeleologia brasileira: história e biografia de Jean-Louis Christinat. In: RASTEIRO, M.A.; MORATO, L. (orgs.) CONGRESSO BRASILEIRO DE espeleologia, 32, 2013. Barreiras. Anais… Campinas: SBE, 2013. p. 225-230. Disponível em: <http://www.cavernas.org.br/anais32cbe/32cbe_225-230.pdf> acesso em: 18/02/2025.
HIRATA, Helena Sumiko. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Revista Tecnologia e Sociedade, 2. ed., 2010. ISSN 1984-3526.
NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
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SOUSA, Patrícia F. C.; TOJA, Sara (2022). Influências da quarta onda feminista na espeleologia BRASILEIRA: dados preliminares. In: MOMOLI, R. S.; STUMP, C. F.; VIEIRA, J. D. G.; ZAMPAULO, R. A. (org.) CONGRESSO BRASILEIRO DE ESPELEOLOGIA, 36, 2022. Brasília. Anais… Campinas: SBE, 2022. p.137-146. Disponível em <https://www.cavernas.org.br/wp-content/uploads/2021/02/36cbe_137-146.pdf> acesso em: 26/02/2025.
TRAJANO, E.; RODRIGUES, R.. Operação Tatus. In: RASTEIRO, M.A.; CORBANI-FILHO, M. (orgs.). CONGRESSO NACIONAL DE ESPELEOLOGIA, 10, 1975. Ouro Preto. Anais… Campinas: SBE, 2018. p.45-48. Disponível em: https://www.cavernas.org.br/wp-content/uploads/2021/02/10cbe_045-048.pdf . Acesso em:13/03/2025.