Jennyfer Felicio e Juliana Cavalli

No século XIX, o mundo passava por grandes transformações, que trouxeram mudanças radicais para o cotidiano, a produção científica, a vida econômica e política do período, modificando valores antes considerados intocáveis. A Europa, agora envolvida em um modo capitalista de produzir e consumir, ampliou suas ambições e seu alcance, buscando muito mais que apenas coletar e acumular bens. E o modo de produção eleito para este momento expansionista foi justamente a exploração do trabalho compulsório de pessoas pretas nascidas no continente Africano.

Diferente de outras culturas que usavam o poder e o domínio sobre o corpo como um ato simbolico de demonstração de força e honra, os países europeus, em especial Espanha e Portugal, fizeram da escravidão o pilar de sua ordem social: uma sociedade que enriquecia com a dor de outros.

As ideias da Revolução Francesa – inspiradas no iluminismo – atravessaram o atlântico, mas não foram tão rápidas quanto os ideais de liberdade que circulavam pelo continente americano, principalmente entre os escravizados. Motivados por seus ancestrais a não desistirem, os nascidos no Brasil com a marca da escravidão, se organizaram em diferentes frentes para lutar a favor da abolição da escravatura.

Em uma colônia que nasceu do trabalho e exploração de mão de obra escravizada, pensar em abolição era um ato de rebeldia. Era muito difícil para a elite brasileira pensar em um país sem mão de obra escrava, isso porque seu próprio povo nunca experimentou o trabalho escravo na mesma amplitude, e, mesmo com a lei que proibia o tráfico de escravizados, houve bastante relutância da elite do estado. Mesmo com as críticas, leis como a do Ventre Livre foram promulgadas ao longo do século XIX, o que beneficiou a luta abolicionista.

Antes disso, conseguir a liberdade era ainda mais difícil, todavia uma mulher a conquistou, e seu nome carrega legado de sua vida: Luiza Mahin. O ano de seu nascimento é incerto, mas acredita-se que tenha ocorrido na Costa da Mina, na Nação Nagô Jeje.

(Alberto Henschel/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles)

Após anos de trabalho escravo, pagou pela sua liberdade no ano de 1812, e se tornou quitandeira na Bahia. Foi uma revolucionária com seus tabuleiros, garantindo que as mensagens sobre os levantes negros contra a Província da Bahia chegassem às mãos de seus aliados. A obra “Um defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalvez, conta a história e ressalta a importância dessa personagem na história da luta pela liberdade. Anos mais tarde, Luiza dá a luz a outro importante nome da história negra brasileira: Luiz Gonzaga Pinto da Gama, personalidade que abordamos nesta segunda edição do “Entre às Margens da Abolição”.

Luiz Gama nasceu em Salvador, em 21 de junho de 1830, seu pai era um homem branco com muitas posses, que tornou-se tutor dele após a prisão de Luiza por participar da revolta da Sabinada – ocorrida entre 1837 e 1838 – no Rio de Janeiro. Contudo, a vida de Luiz mudou completamente aos dez anos, quando seu pai o vendeu como escravo para quitar as dívidas que acumulou graças a seu vício em jogos de azar. Gama foi revendido diversas vezes até chegar a São Paulo, onde exerceu o trabalho doméstico. Aprendeu a ler graças a um hóspede de seu dono. Anos depois, já adulto, descobriu que tivera seus direitos violados com o delito de “Reduzir á escravidão a pessoa livre, que se achar em posse da sua liberdade.”, previsto no Artigo 179, do Código Criminal do Império do Brasil. Aos 17 anos, conseguiu adquirir de volta a sua liberdade.

(Trecho do artigo do periódico “Os Direitos humanos, a luta de Luís Gama”. Fonte: Arquivo IEB-USP, Fundo Ernani Silva Bruno, ESB(75A)1-114)

Desde muito cedo, Luiz Gama se tornou um grande estudioso das letras e se apaixonou por Direito. Ainda jovem, se candidatou a uma vaga no curso de Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, porém teve sua vaga negada por ser um homem negro. Embora tenha frequentado a faculdade como ouvinte durante um curto período de sua vida, Gama nunca cessou seus estudos e se aprofundou em seu trabalho e pesquisas de forma autodidata.Com seus esforços e trabalho, libertou mais de 500 escravizados ao longo da vida. Um de seus casos mais emblemáticos foi o “Questão Netto”, em que um fidalgo português com muitas posses escreveu em seu testamento, que, depois de sua morte, todos os seus escravos deveriam ser libertos, porém seu pedido não foi atendido. Foi então que Luiz Gama, ao ler sobre o ocorrido no jornal, decidiu advogar o caso que estava em disputa judicial. Ao final, Gama conseguiu libertar mais de 200 pessoas, sendo este caso conhecido como a maior ação coletiva de libertação de escravizados nas Américas.

Além de advogado, Luiz Gama foi um exímio escritor, e produziu cerca de 600 textos, ensaios e poemas. Lançou seu primeiro livro literário em 1859, intitulado “Trovas Burlescas de Getulino”, em que ele, mais uma vez, afirma sua natureza aguerrida em prol do fim do “preconceito de cor”. Esse livro abriga um de seus poemas mais famosos: “Quem sou eu”. O poema trazia um convite para que os negros não se deixassem levar pela ideia de embranquecimento, e sim, fossem orgulhosos de suas raizes e pele negra.

Como jornalista, Gama foi um ferrenho opositor do império, e acreditava em um país livre das opressões do absolutismo e do trabalho compulsório. Com isso, foi um dos fundadores do jornalismo satírico paulista, dirigindo os jornais; “O Diabo Coxo”, “O Cabrião” e “O Polichinelo”. Seu trabalho e obra são referências nas questões abolicionistas no mundo inteiro, e no Brasil, o trabalho desenvolvido pelo advogado, escritor e jornalista, impactou a história de uma nação e 138 anos depois foi declarado Patrono da Abolição da Escravidão, pela Lei 13.629/2018 e inserido no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, pela Lei 13.628/2018. Luiz Gonzaga Pinto da Gama morreu em São Paulo, em 24 de agosto de 1882, acreditando na ideia de um país livre, porém não teve oportunidade de ver a Lei Áurea sendo promulgada e seus iguais livres.

Gama sonhava com um país sem reis e sem escravos, e graças a seu trabalho frente à luta abolicionista, a liberdade chegou para muitos. E em seus escritos disse:

Em nós, até a cor é um defeito.
Um imperdoável mal de nascença,
o estigma de um crime.
Mas nossos críticos se esquecem
que essa cor, é a origem da riqueza
de milhares de ladrões que nos
insultam; que essa cor convencional
da escravidão tão semelhante
à da terra, abriga sob sua superfície
escura, vulcões, onde arde
o fogo sagrado da liberdade.

Gama, L. 1859

(Retrato de Luiz Gama publicado no artigo “Centenario de Luiz Gama: O Brasil commemora hoje o primeiro hoje o primeiro centenário do nascimento do illustre abolicionista”. Fonte: Arquivo IEB-USP, Fundo Mário de Andrade, MA-R020-05)

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Mediadoras do Setor Educativo do MM Gerdau, Jennyfer Felicio é estudante do curso de Antropologia e Arqueologia da UFMG e Juliana Cavalli, estudante do curso de Letras da UFMG.

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Referências:

Alberto Henschel. Mulher de turbante, c. 1870. Rio de Janeiro, RJ / Acervo IMS Disponível em: <https://acervos.ims.com.br/portals/#/detailpage/67157>. Acesso em: 19 jun. 2024.

COLETIVO NARRATIVAS NEGRAS. Mulheres pretas da abolição Dandara dos Palmares, Luiza Mahin, Maria Felipa e Tereza de Benguela. [s.l.] Editora Voo, 2022.

‌FERREIRA, Ligia Fonseca. Luiz Gama por Luiz Gama: carta a Lúcio de Mendonça. Teresa, São Paulo, Brasil, n. 8-9, p. 300–321, 2008. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/teresa/article/view/116741. Acesso em: 18 jun. 2024.

Molina, Diego A.. Luiz Gama. A vida como prova inconcussa da história. Estudos Avançados [online]. 2018, v. 32, n. 92 [Acessado 18 Junho 2024], pp. 147-165. Disponível em: <https://doi.org/10.5935/0103-4014.20180011>. ISSN 1806-9592.

SALLES, R.. A ABOLIÇÃO REVISITADA: ENTRE CONTINUIDADES E RUPTURAS. Revista de História (São Paulo), n. 176, 2017.