Allane Machado, Marco Aurélio Torres e Juliana Cavalli
Curadoria: Marcus Henrique O. de Jesus
Na história, existiram e existem personagens comumente invisibilizados em detrimento de outros. Diante da necessidade de ampliar os discursos e narrativas menos conhecidas, o MM Gerdau – Museu das Minas e do Metal publica uma série de textos com a temática: “Pessoas negras ícones da abolição da escravatura”, em homenagem à valorização e herança afro-brasileira. O objetivo é trazer luz à breves biografias dessas personalidades e sua relevância histórica. Dessa vez, vamos conhecer Theodoro Sampaio e os atravessamentos culturais que a sua história nos permite refletir do período em que viveu (século XIX) até os tempos de hoje.
Quando pensamos em personalidades da nossa história, seja ela recente ou antiga, tendemos a um imaginário único. Antes de entrarmos na biografia da personalidade desta edição e refletirmos sobre os temas que ela nos provoca a pensar, quero te convidar a fechar os olhos e imaginar: um geógrafo, reconhecido pelas comissões importantes da sua época como o maior de seu tempo, professor, ilustrador, escritor, engenheiro civil, e que contribuiu muito para a construção de um plano hidráulico, mapeamento e topografia no nosso país, e que, (além de tudo isso!) foi posteriormente eleito Deputado Federal.
Agora pense em uma personalidade importante da história do Brasil. Pode ser alguém sobre quem você aprendeu na escola ou viu em algum livro, ou filme. Já pensou? Qual é a cor da pele dessa pessoa? É claro que não dá pra saber com certeza, mas talvez você tenha pensado em uma pessoa branca — com traços considerados brancos. Acertamos? Se não foi esse o caso, isso pode ser um sinal de que o seu imaginário está se ampliando (Parabéns!). Mas, se a imagem foi mesmo de uma pessoa branca, não se preocupe, isso não é só uma escolha sua, é um reflexo do modo como a nossa história vem sendo contada há séculos.
Entender como o imaginário cultural brasileiro é construído, principalmente no que tange a identidades, é se deparar com o apagamento recorrente da possibilidade da existência de identidades que vão além da branquitude eurocêntrica. E como este imaginário hegemônico se constrói até os tempos de hoje? Para pensarmos essa questão, começamos pela análise da obra “Redenção de Cam”, do pintor Modesto Brocos, de 1895.
A obra traz à cena quatro personagens:
Modesto Brocos. Redenção de Cam, 1895
Observamos, ao canto esquerdo, uma idosa negra que ergue aos céus suas mãos em agradecimento pelo clareamento da pele de seu neto (ou neta). Ao lado dela está sua filha, mulher negra de pele clara, e, no colo desta, um bebê branco. Ao canto direito da tela, um homem, jovem, branco, observa de canto com olhar de satisfação a criança, semelhante a ele.
Esta obra retrata a busca pelo embranquecimento racial, fato histórico posto como política de eugenização no país em meados do século XIX, como diz Abdias do Nascimento “o que se fazia essencial e indispensável era a necessidade de embranquecer o povo brasileiro por dentro e por fora” (Nascimento, 2016, p.88) de modo a construir o que chamariam de “identidade brasileira” inspirada em uma identidade europeia eurocentrada e branca.
Na dissertação “Modos de Negra e Modos de Branca: o retrato ‘Baiana’ e a imagem da mulher negra”, da historiadora Renata Bittencourt, ela classifica: “[…] a obra traduz bem a perspectiva das elites sobre o negro e a consequente perspectiva da academia sobre sua imagem. […] o objetivo claro de ilustrar as teses de branqueamento correntes na época.”
O Brasil, se tornando uma República ex-escravocrata (ao menos em lei), precisava, naquele momento, reafirmar a sua identidade perante ao mundo. E a imagem que tinha adesão era a do europeu, que se distanciasse de uma herança africana, indígena, no fenótipo, nos costumes e na cultura.
Sendo assim, diante de ideais que buscavam alcançar o embranquecimento de toda uma nação e da crescente imigração europeia, desde a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, foi realizada o que podemos considerar como a primeira política pública estabelecida pelo novo regime no Brasil: custear a imigração e subsidiar famílias europeias imigrantes para que se estabelecessem no país. Com o aumento da população branca, ocorreria um paulatino embranquecimento da nação brasileira, que se encaixaria então nos padrões de civilidade e decência, se aproximando do “ideal” europeu, apagando a presença negra no país. E, a partir dessa ideologia do branqueamento, enxergamos as porosidades da construção da nossa identidade, como explica Lélia Gonzalez em “A questão racial na América Latina”:
Transmitida pelos meios de comunicação de massa e pelos sistemas ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores da cultura ocidental branca são os únicos verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca comprova a sua eficácia e os efeitos de desintegração violenta, de fragmentação da identidade étnica por ele produzidos, o desejo de embranquecer (de “limpar o sangue” como se diz no Brasil) é internalizado com a consequente negação da própria raça e da própria cultura (Gonzales, 1988).
Quando olhamos a nossa história, vemos que apesar da tentativa incessante de submeter a população negra ao desaparecimento completo e as provas contundentes em campos científicos e culturais diversos de apagamento da contribuição afro – brasileira (veja o quadro), essa é outra história de resistência contra o racismo. Ao contrário do que se prega, o povo negro sempre teve na sua essência a tendência a não sucumbir face aos séculos de violência dedicados a eles.
O Polímata Negro
Theodoro Sampaio, nossa personalidade da vez, nos provoca a pensar a antítese dessa identidade hegemônica — e ainda colabora para ampliar o nosso repertório de figuras importantes na história nacional. Nascido em 1855, Theodoro é fruto de uma relação interracial entre uma mulher negra escravizada, Domingas da Paixão do Carmo, e um homem branco, cuja paternidade não é conhecida ao certo. Não era o único filho de mãe escravizada, mas, por ter o pai branco, teve sua alforria comprada por ele e, ainda criança, foi levado para estudar no Rio de Janeiro.
Esse acesso à educação foi uma exceção, considerando especialmente o contexto da época. A legislação vigente deixava claro quem podia ou não frequentar as escolas. A Lei n.º 1, de 1837, e o Decreto n.º 15, de 1839, sobre a Instrução Primária no Rio de Janeiro, estabeleciam:
Artigo 3º – São proibidos de frequentar as Escolas Públicas:
1º Todas as pessoas que padecerem moléstias contagiosas.
2º Os escravos, e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos(Brasil, 1937).
Mesmo tendo escapado formalmente dessa proibição, por ter sido alforriado pelo pai, Theodoro ainda viveu em uma sociedade profundamente racista e excludente. Isso ficou evidente já no início de sua carreira, em 1879, quando participou da Comissão Hidráulica do Império como responsável por estudos de portos e navegação interior, sob direção do engenheiro americano Mr. W. Milnor Roberts. Apesar de ter sido convidado oficialmente para compor a equipe, seu nome não apareceu na lista publicada no Diário Oficial. O motivo? Ser o único homem negro entre os engenheiros.
Em um manuscrito de 1897, Theodoro relatou este episódio de forma comovente:
Em 1887, comecei propriamente minha carreira de engenheiro, como membro da ‘Comissão Hidráulica’ […] Estive presente ao ato assim como todos os meus colegas e, no dia seguinte, publicava o Diário Oficial a relação dos engenheiros para ele nomeados. O meu nome, porém, por motivo que então ignorei, não apareceu na relação. […] É que eu era o único homem de cor na luzida comitiva […] Fui assim eliminado e experimentei então o primeiro espinho do preconceito entre nós (Sampaio, 1897 apud Lima, 1981).
Ainda segundo ele, foi a intervenção do Senador Viriato de Medeiros que garantiu a correção da injustiça e sua nomeação oficial como engenheiro de primeira classe, em 1881. Contudo, mesmo assim, seu nome não foi citado nos diários oficiais da Comissão à época, revelando como o apagamento da contribuição negra se dava de forma sutil, porém sistemática.
Apesar desses obstáculos, Theodoro construiu uma carreira brilhante. Formado engenheiro civil, atuou em projetos de urbanismo — como o do bairro da Pituba, em Salvador — e em obras de saneamento básico. Foi também um intelectual multifacetado, contribuindo com estudos relevantes nos campos da Geografia, Engenharia, Arquitetura, Antropologia e Sociologia. Entre suas obras publicadas, destacam-se: São Paulo nos tempos de Anchieta (1897), O tupi na geografia nacional (1901), Rio São Francisco e a Chapada Diamantina (1906), Atlas dos Estados Unidos do Brasil (1908) e Dicionário histórico, geográfico e etnográfico do Brasil (1922).
Sua colaboração com Os Sertões, de Euclides da Cunha, também foi significativa. Seu conhecimento técnico sobre o sertão e suas contribuições científicas, como o artigo “A respeito dos caracteres geológicos do território compreendido entre as cidades de Alagoinhas e a de Juazeiro pelo trajeto da linha férrea em construção” (Revista de Engenharia, 1884), foram fundamentais para a produção da obra. Além disso, seus cadernos de campo serviram como um registro cartográfico e também artístico de suas expedições, já que o mesmo lançava mão de uma linguagem poética em sua escrita e suas ilustrações revelavam o caráter romântico que o cientista empregava em seu ofício.
O Rio de S. Francisco, Trechos de um diario de viagem: e A Chapada Diamantina Sampaio, 1855-1937
Theodoro Sampaio e a escravidão de seu povo
Após a abolição da escravatura em 1888, Theodoro registrou em manuscritos sua preocupação com o futuro da população negra recém-liberta. Ainda que tivesse “portas abertas” por sua trajetória singular, isso não o blindava do racismo estrutural. Sua estratégia de sobrevivência passava pela assimilação dos costumes dominantes — uma exigência cruel da época. Theodoro foi uma exceção à regra: um homem negro que, alforriado ainda na infância, teve acesso à educação e ocupou espaços reservados à elite branca, casou-se, formou família e deixou um legado intelectual incontestável. Pensar nas oportunidades que ele recebeu — e nas barreiras que enfrentou, mesmo assim — nos obriga a refletir sobre o que mudou (ou não) até os dias de hoje.
Fazendo um paralelo entre o Brasil de 1888 — ano em que foi finalmente promulgada a Lei Áurea — e o Brasil de hoje, é possível perceber que ainda existem muitas lacunas e desafios para enfrentar as consequências da diáspora africana. A Lei Áurea, apesar de abolir formalmente a escravidão, não trouxe mecanismos concretos para reparar os séculos de exploração e violência sofridos pelas pessoas negras. Sua aprovação representou, na prática, uma isenção de responsabilidade do Estado em relação aos ex-escravizados, o que gerou uma profunda desigualdade entre pessoas negras e brancas no país.
Hoje, no entanto, podemos identificar políticas públicas que buscam reduzir essas desigualdades. Um exemplo é a Lei nº 12.711/2012 — a chamada Lei de Cotas —, que promove o acesso de pessoas negras ao ensino superior como forma de reparação histórica e de responsabilização do Estado por sua omissão.
Considerando as consequências de tais políticas de embranquecimento e apagamento da população preta, seu modo de vida e sua história, algumas questões surgem: quantos negros alforriados conseguiam acessar a educação e até mesmo o ensino superior? E hoje, na última década, qual é o número de pessoas negras que acessam o ensino superior em relação às pessoas brancas no Brasil?
Como de costume, refletir e elaborar o passado a partir desses questionamentos, a partir do nosso tempo, não tem como pretensão o agenciamento de respostas que fechem o debate, mas que estimulem sempre a produção de novas perguntas que levem a outras, e assim sucessivamente, com o intuito de contribuir melhor para a elaboração do nosso tempo presente e pensar agendas para o nosso futuro. Quando olhamos para a história de Theodoro, entendemos que pensar a identidade brasileira não se resume apenas ao que foi empreendido pelo Brasil no início de sua República. É preciso se aproximar de múltiplas perspectivas do pensar, no que constitui cada lacuna, fissura do território do nosso país, de norte a sul. Precisamos olhar pela lente das culturas, das artes e das ciências. E para tanto, junto à produção escrita do projeto Tudo é História Negra, produzimos também lives com convidados para elaborar e apresentar com mais conteúdo e propriedade o que decidimos expor e resgatar na nossa série — Nas Margens da Abolição.
Nesta sétima edição, transmitida dia 15 de maio através do nosso canal no YouTube (THEODORO SAMPAIO: O LEGADO DE UM INTELECTUAL NEGRO NAS GEOCIÊNCIAS) nosso convidado foi Marcus Henrique Oliveira de Jesus, pesquisador, natural de Salvador, Bahia. Formado em Geografia pelo Instituto Federal da Bahia (IFBA), participou de projetos de pesquisa sobre políticas territoriais no litoral norte da Bahia e sobre a história da Geografia no estado, com foco na trajetória e na produção intelectual de Theodoro Sampaio. É mestre pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde estudou as políticas territoriais na Bahia. Atualmente, é doutorando na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), pesquisando as ideias sobre a natureza no Iluminismo europeu do século XVIII. Atua como professor na rede pública de Alagoas e coordena um projeto de pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Alagoas (FAPEAL), com foco em geografia histórica.
Em nossa live, Marcus apresentou a trajetória de Theodoro e teceu comentários a partir de sua perspectiva sobre a importância do reconhecimento do polímata na constituição do nosso país. Theodoro é um nome urgente a ser conhecido nas escolas, e ser apresentado nos livros didáticos no ensino básico do nosso país, com o intuito de promover o conhecimento para além do trabalho de mão de obra escrava imposta ao povo negro da África durante 388 anos desse regime, e que ainda reflete hoje no apagamento histórico que testemunhamos no nosso cotidiano.
Sampaio vivenciou diversas macro-transformações econômicas e sociais. Seu legado o tornou um renomado cientista, capaz de transitar pelas ciências humanas e naturais, um herói do saber e um símbolo da inegável capacidade intelectual de seu povo. Por isso, contribuir com o resgate de Sampaio é contribuir com o resgate cientifico negro do nosso país em âmbitos que a historiografia tradicional não manifesta interesse em contar.
O Rio de S. Francisco, Trechos de um diario de viagem: e A Chapada Diamantina Sampaio, 1855-1937
O Rio de S. Francisco, Trechos de um diario de viagem: e A Chapada Diamantina Sampaio, 1855-1937
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Referências:
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