Jennyfer Felicio, Juliana Cavalli e Marina Vale
“Samba batido por negro fere a lei do doutor
Que é reprimido pelas mãos do seu feitor
Com a lua cheia, sob o clarão do luar
Negro cantava e dançava pra sua arte mostrar”
Samba Enredo Grande Rio 2022 – Ciata – a Mãe Negra do Samba
Se fosse possível descrever de forma simples a ancestralidade, sua linguagem seriam as cantigas. Se há algo que sempre uniu o povo preto, foi a música. Cantar nas fazendas era uma maneira de fugir daquele lugar, mas principalmente de se encontrar, tanto no outro, como em si mesmo. Muitas coisas foram tiradas das pessoas que chegaram no Brasil: seu nome, sua família, sua língua, sua reza, seus filhos, mas, de alguma forma muito sagrada, a melodia permaneceu. E essa música ecoou de várias maneiras em diversos cantos desse país e se enraizou na nossa cultura. Desde o canto dos escravos até o samba, tudo é negro, e permanece negro.
A história do samba começa nos batuques e gingados produzidos pelos descendentes dos pretos em diáspora trazidos da África para o Brasil, com o tráfico negreiro, principalmente por aqueles que desembarcaram na Bahia. Essas sonoridades geralmente eram associadas aos rituais religiosos do povo preto, que também tinha na música uma linguagem comunicacional, utilizando dos sons e dos movimentos do corpo e assegurando a permanência da comunidade.
No século XIX, com a chegada da família real portuguesa, houve grandes mudanças no país, dentre elas a transferência da capital, que deixa de ser em Salvador e passa para o Rio de Janeiro. A mudança obrigou a corte a migrar para a cidade carioca, carregando consigo seus trabalhadores escravizados, em sua maioria, compostos por descendentes de Yorubá, localizados na África Oriental.
Muitos anos depois, a abolição foi conquistada, o que levou a um novo arranjo geográfico e social da capital que, aliado a um projeto de urbanização liderado por Rui Barbosa, obrigou a população preta recém-liberta a migrar e ocupar áreas, criando um processo de aquilombamento. Com o (consequente) surgimento dos primeiras cortiços, o samba foi responsável por reorganizar um povo que, por conta da escravidão, foi separado de suas próprias culturas.
Um dos espaços se torna importante, como reduto do samba e resistência cultural, a casa de Tia Ciata, que é a personalidade que abordamos nesta terceira edição do “Entre às Margens da Abolição”. A baiana, de nome Hilária Batista de Almeida, nascida em 1854, em Santo Amaro da Purificação/BA, teve seus primeiros envolvimentos com as religiões de raiz africana ao participar da fundação da “Irmandade da Boa Morte”, confraria religiosa liderada e organizada apenas por mulheres negras, em Cachoeira, ainda aos 16 anos.
(Acervo da Organização Cultural Remanescentes de Tia Ciata)
Mas foi em 1890 que se estabeleceu – situada na antiga Rua Visconde de Itaúna, adjacente à Praça Onze, na Rua do Sabão, centro do Rio de Janeiro – conhecida por ser um reduto de pretos e tinha forte vínculo com as religiões de Yorubás. Tia Ciata era mãe de santo e doceira conhecida da Pequena África, na zona portuária do Rio de Janeiro, e seus doces de tabuleiro faziam sucesso na região. Quando se casou com João Baptista da Silva, funcionário público, também negro, construíram uma casa, que fez parte da história do samba. Diversos artistas frequentavam a casa, entre eles, Donda, suposto autor do primeiro samba gravado do Brasil. Reza a lenda que a música foi composta dentro da casa de Tia Ciata.
Quem for bom de gosto
Mostre-se disposto
Não procure encosto
Tenha o riso posto
Faça alegre o rosto
Nada de desgosto
DONGA, MARIO DE ALMEIDA. Pelo telefone. Rio de Janeiro, 1917
(Casa de Tia Ciata, Autor desconhecido)
Com a proclamação da República Brasileira, em 1889, e o início da era do rádio, o samba saiu dos morros e se embrenhou nas classes médias. As políticas higienistas adotadas pelo governo da época, com tentativa de tornar o Rio de Janeiro uma “europa brasileira”, imitando a Belle Époque francesa, contribuíram para que o samba se tornasse uma manifestação da classe trabalhadora carioca. Visto que tudo que advinda da Europa era considerado mais bonito e esteticamente aceitável, surgiram as primeiras repressões às práticas socioculturais das populações operárias, e o samba, nascido nos cortiços e favelas, também foi alvo do governo. O samba foi colocado como arcaico, bárbaro, imoral e, até mesmo, perigoso.
(O Homem e seu Carnaval. Heitor dos Prazeres, 1934)
No governo de Getúlio Vargas e em sua ditadura, houve uma tentativa fracassada de limpar o nome do samba. Já que era um ritmo que se popularizou entre a classe trabalhadora, não seria apropriado que esse fosse objeto de influência que fizesse o indivíduo questionar os métodos de trabalho e de vida impostos pelo governo. Era preciso que o samba representasse, uma vez que não podia ser exterminado, um exemplo de civilidade e nacionalidade. Mesmo essa ideia não dando certo, o samba conseguiu se firmar como um dos grandes símbolos nacionais, dessa forma os artistas usavam sua música para protestar contra as repressões do regime varguista, reivindicando direitos e liberdade. Portanto, a grande importância no samba foi não apenas reafirmar a identidade do povo negro, mas tambem enfatizar a ideia de nação e de quem a constroe de verdade.
Mas o que realmente importa é que o samba sempre representou a força do povo negro e trabalhador. E o legado de Tia Ciata permanece vivo por meio de sua família. Seu neto, Bucy Moreira, conviveu com a avó e, mais tarde, se tornou importante figura do samba carioca. Já sua bisneta, Gracy Mary Moreira, criou o espaço Cultural Casa da Tia Ciata, assim como o Batuke de Ciata, além de presidir a Organização Remanescentes de Tia Ciata e organizar frequentes rodas de samba e eventos culturais diversos.
Tia Ciata não foi apenas uma figura central na história do samba; ela foi uma verdadeira guardiã da cultura afro-brasileira, cuja vida e trabalho deixaram uma marca indelével na música e na sociedade. Seu legado continua a ecoar por meio das gerações, celebrando a rica tradição que ajudou a moldar e promover. Com sua casa servindo como um ponto de encontro vibrante para artistas e músicos, Tia Ciata transformou o samba de uma expressão regional em um símbolo nacional. Por meio de sua dedicação e paixão, ela ajudou a transformar o samba em um dos maiores patrimônios culturais do Brasil. Sua história é um testemunho do poder da cultura e da perseverança e sua memória continua a ser honrada e celebrada em cada ritmo e melodia que compõem a alma do samba, afinal de contas: “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é. Ou é ruim da cabeça, ou doente do pé.”
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Mediadoras do Setor Educativo do MM Gerdau, Jennyfer Felicio é estudante do curso de Antropologia e Arqueologia da UFMG, Juliana Cavalli, estudante do curso de Letras da UFMG e Marina Vale estudante de Museologia da UFMG.
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Referências:
Casa da Tia Ciata – Biografia. www.tiaciata.org.br. Disponível em: <https://www.tiaciata.org.br/tia-ciata/biografia>.
GOMES, Tiago de Melo. In: Artigo: Para Além da Casa de Tia Ciata: Outras Experiências no Universo Cultural Carioca, 1830-1930. Afro-Ásia, nº 30, Universidade Federal da Bahia. Bahia, 2003.
MOURA, Roberto, Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995. 33p.
SILVA, Yara da. Tia Carmem: negra tradição da Praça Onze. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.